Se o tempo voltasse...
Oi vozinha...
Ontem foi o seu aniversário. Que lindo não é? 83 aninhos de vida. É uma boa quantidade de estações para quem teve uma vida de batalha, nove filhos e perdeu o marido tão cedo. Queria ter te dado um abraço bem forte, minha velhinha querida, mas não pude. Estou tão longe. Há cinco anos que não te vejo, que não toco teu rosto, que não te beijo, que não vejo o seu sorriso alegre e doce.
Ontem quis fazer tudo isso. Lembrei o dia inteiro. Mas mesmo que pudesse, a senhora sentiria meu abraço, meu beijo, minhas mãos passando nos seus longos cabelos lisos e brancos e não me reconheceria. Há muito que não reconhece ninguém, não é minha avó? A senhora não sabe o quanto eu me arrependo de não ter atendido o seu pedido há uns três anos, de parar um pouco os estudos para ir te visitar. Eu achava que tinha todo o tempo do mundo, vozinha. Não tive...
Agora a senhora ri e não sabe para quem. Recebe minha mãe em seus braços e pergunta quem ela é. Abençoa minha irmã inteira e demonstra, nos seus olhos, que a lembrança não existe. Escuto estes relatos chorando. Não fui capaz de interromper minhas atividades para me sentir vista e reconhecida pela última vez em sua vida. Se partires nos próximos anos levarás contigo minha imagem adolescente, jamais a visão da neta adulta. Tão adulta que não anda aprendendo com os erros, que continua deixando para depois as coisas que são urgentes, não é dona Edite?
Mas olhe, eu lembro de todos os momentos da minha infância no seu lar: a tv que só funcionava com a programação nacional, o banheiro fora da casa, as bicadas das galinhas e dos gansos, o medo dos porcos e das cobras no quintal, as quedas da jaqueira, as fugas das terras vizinhas, os arranhões nas cercas de arame, as sessões de violão na calçada, os banhos de piscina no clube ao lado, as missas na catedral, o casamentos dos primos, a farinha de castanha pilada na hora, o feijão de água e sal, as visitas à padaria, a lambada na vitrola, a chuva de julho, seu cachimbo fumado no escuro da cozinha depois do jantar, o calcigenol na cristaleira, o café com leite de vaca e o pão assadinho logo cedo – a gente corria de pijaminha para a cozinha, lembra vó?, o meu era azul.
Tudo isso eu lembro de lá. Tudo isso me lembra de ti.