Pelos silêncios a sonhar . . .
Hoje eu recebi uma crônica linda enviada pelo Marcelinho. Eu queria postar o link para a página da Zero Hora, onde o texto foi publicado, que nem eu fiz com o de Samarone. Como não há como indicar o link, eu vou colocar o texto aqui no blog e logo abaixo vão as informações sobre a fonte, certo?
Uma coisa que eu achei interessante neste texto é como a narrativa é cinematográfica. Eu visualizei todas as cenas, como se estivesse vendo um filme bom. Espero que isso se transmita a vocês, também! Boa leitura!!! Xavier, obrigadinha. Eu adorei :)
Liberato Vieira da Cunha
07/06/2005
Da desinvenção das coisas
Tem umas coisas que não podiam ser desinventadas. O quê? O bolero que diz algo assim: me hacen mas falta tus cartas/ que la propia vida mia / y aún que sean tonterías, / escribeme, escribeme.
Nenhum bolero podia ser desinventado. Tem outros, como os que falam de contigo en la distancia, ou de toda una vida, ou en esta tarde gris.
Vi ontem uma foto de 1963. Não podiam ter desinventado aqueles jardins bem cuidados, as meninas de bambolê, os pares passeando de mãos dadas, o automóvel Rover estacionado ante o Auditório Araújo Vianna, dispensando flanelinhas, tudo imerso numa luz toscana.
Transitam beldades em flor pelas calçadas da Rua da Praia. Junto ao meio-fio, sobre o pavimento de pedras azul e rosa, cavalheiros contemplam sua graça e suas formas e seu encanto e seu garbo e há um momento em que o olhar da moça com o uniforme do Instituto se encontra com o do universitário de terno de nycron. Não podiam ter desinventado aquele instante mágico.
É sábado, as areias da praia de Ipanema compõem uma multicor floresta de guarda-sóis, lindas mulheres se banham nas águas límpidas do Guaíba, ao longe passam veleiros e uma lancha que rege as evoluções do esqui da mais esplendente garota da cidade. Não podiam ter desinventado essas paisagens.
Aqui é o Morro de Santa Teresa. Vinte e um casais de enamorados se dividem entre carícias e a visão do pôr-do-sol cantado por Mario Quintana, das ilhas, das colinas, do calmo espelho que é o lago, da silhueta ousada e tranqüila de uma cidade ainda docemente européia. Não podiam ter desinventado o mirante e a cumplicidade de amores que aguardavam a visita do luar e de seu séquito de estrelas.
Aquele rapaz que toma o bonde Duque vai até a esquina da Casa Masson e depois ao Krahe, à espera da passagem de uma loira, formosa senhorita. Se tiver sorte, ela surgirá às cinco, subirão a Ladeira até a Praça da Matriz. Ele ligará o rádio do Rover, ouvirão o bolero Soñemos, darão uma volta pelos balneários, subirão a Rua Silveiro, estacionarão bem no ponto do belvedere, onde, a oeste, irrompe o incêndio do céu. Se tiver sorte, o rapaz beijará os lábios da senhorita formosa e loira.
Eu sou aquele rapaz.
Não podiam ter me desinventado.
E-mail do autor: liberato.vieira@zerohora.com.br
Fonte: Jornal Zero Hora - Porto Alegre - Segundo Caderno
Edição de 07 de junho de 2005 - Nº 14533
P.S - O título deste post é o último verso do poema Depois do Sol, da Cecília Meireles, que está publicado no Jornal da Poesia