Esse blog foi criado com o intuito de dividir com as pessoas as minhas idéias sobre as coisas. Apareça sempre para bater um papo.
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sexta-feira, março 01, 2002
EM VÁRIOS MUNDOS AO MESMO TEMPO
Ana Paula - 21/01/02 - 22:05
Já estava anoitecendo e a brisa fria e leve, característica dos fins de tarde na Veneza Brasileira, estava soprando, quando pus os pés em casa. Naquela tarde eu havia degustado uma maravilhosa tapioca na tenda da Dona Joana, no campus da UFPE.
Como de costume, rumei logo para o meu quarto para ligar o computador e, para a minha surpresa, dei de cara com um envelope pardo, endereçado a mim, em cima da cama. Senti algo bom me invadir o coração, dei um sorrisinho, e me senti a própria Sofia Amundsen recebendo seu primeiro envelope, cujo conteúdo era um bilhetinho com uma pergunta surpreendente: Quem é você?
No meu envelope pardo não havia nenhuma pergunta, mas o seu conteúdo não era menos surpreendente. Os envelopes pardos de Sofia tinham Sócrates, Platão, Locke e Kant. O meu envelope pardo era recheado de Sartre, Jorge Luis Borges, João Gilberto e Renato Russo.
A cada recorte de jornal eu me via em um mundo paralelo, porém eles coabitavam harmonicamente dentro de mim, faziam parte das coisas que eu aprecio. Eu me senti feliz lembrando da minha primeira leitura do Borges (O Outro), da primeira vez que eu ouvi Tempo Perdido, da bela foto do João Gilberto com a Astrud Gilberto (na capa da Bravo), da minha primeira semana com a Idade da Razão nas mãos, onde protagonizei um dos maiores vexames da minha existência: estava eu sentada no ônibus, lendo o livro, e me deixei ser absorvida pela estória de tal maneira, que a um dado momento, me senti tão indignada com os conflitos do autor que gritei em pleno ônibus “Que absurdo! Que cara louco!”, e tive que encarar os olhares perplexos dos demais ocupantes e fingir que não era comigo.
Fui recordando esses momentos e passando os recortes para ver o que mais me reservavam, quando repentinamente peguei um recorte, era de um caderno de Cultura, com uma ilustração muito bonita de Van Gogh e tinha uma crônica com o título de “Memórias Involuntárias”. Iniciei a leitura e me vi em um outro mundo, que não era o meu. Não falava de mim, dos meus gostos, das minhas leituras, das minhas lembranças. Sem querer eu fui transportada a esse mundo, visualizando o ipê na Praça da Alfândega, o abrigo da Praça XV, a bandinha no Chalé, a Rua da Praia, avô de boina lendo o jornal e abanando as pernas, a avó cantarolando “Madressilva” e o menino de calças curtas correndo atrás dos bondes amarelos.
O autor parecia lembrar com carinho da sua infância, da vida tranqüila da sua família, dos cacoetes do seu avô, de como as coisas haviam mudado em sua vida até então. Sofia Amundsen também lembrava de sua avó, do pai que andava arrastando os chinelos em casa, das poucas mudanças na Curva do Capitão.
E eu fiquei ali, envolvida por todos esses mundos, tomada pelas minhas memórias. Sentindo o meu mundo. Imaginando o mundo deles.
Sofia lembrará para sempre da sua avozinha, do seu gato Sherekan e do seu professor de Filosofia. O autor do texto recordará até o fim dos seus dias da Porto Alegre da sua infância e dos momentos na Rua da Praia. Em Recife também tem Rua da Praia, ela ainda existe e é muito bonita. Se um dia eu for embora daqui, não esquecerei dela, nem da tapioca da Dona Joana, nem do envelope Pardo e nem do menino que morava no sobrado perto da Captania.