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sábado, dezembro 28, 2002

Há dez anos partia Otto Lara Resende...

O ano era 1992. O jornalista, advogado e escritor Otto Lara Resende internava – se para fazer uma cirurgia pequena e dela não sairia. Mineiro, de São João Del Rei, o escritor lançou dez livros ao longo de sua vida e trabalhou nos principais jornais do país. Era querido por todos os amigos e carregava consigo a fama de conciliador. Sempre que era necessário resolver algum embate, ele era logo solicitado.

Em seu aniversário de 80 anos, Carlos Drummond de Andrade seria presenteado com uma comemoração que muito o assustava, por ser este avesso a grandes manifestações públicas. Como não gostaria de receber falsas homenagens e nem queria ter o desgosto de ver em sua festa pessoas a quem ele não estimava, Drummond entregou a Otto uma lista com o nome de pessoas que ele não gostaria de ver presentes naquela data. Embora tenha recebido pressão de todos os lados para revelar os nomes, o amigo morreu sem que ninguém soubesse quem eram os listados. Poucos anos antes de falecer, Otto diria ao jornalista Geneton Moraes Neto que a lista havia sido destruída.

Junto com Fernando Sabino, Helio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, o escritor fundou a Editora do Autor. Eles se conheceram em Belo Horizonte e a amizade foi tão forte que caiu sobre o quarteto o título de “mineiros do apocalipse”. Eram sempre flagrados em algum bar da capital mineira conversando até altas horas da noite. Otto Lara Resende morou várias vezes fora do País e seus amigos também seguiram seus caminhos. As cartas trocadas por eles durante o período de 1943 a 1992, ano da morte de Otto (Paulo Mendes Campos faleceu em 1991 e Helio Pellegrino em 1988) foram lançadas pelo único dos apocalípticos vivo, Fernando Sabino, sob o título de Cartas na Mesa




Uma amizade conturbada, porém bastante duradoura, do mineiro foi com o também jornalista e escritor pernambucano Nelson Rodrigues. Nelson costumava homenagear seus amigos em seus trabalhos e uma de suas peças teatrais foi intitulada “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”. O nome em destaque no letreiro do Teatro Maison France deixou Otto profundamente desagradado. Segundo Ruy Castro, autor da biografia de Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico (Companhia das Letras – 1993 – 464 páginas), em um de seus momentos mais conturbados o homenageado bradava “Com o Nelson, só a tiro”. Otto viu – se de repente obrigado a seguir um conselho que dava a todos os amigos que o procuravam reclamando das homenagens inquietantes que Nelson fazia a seus afetos: ficar quieto. Sua resposta de desagrado foi dada com o seu não comparecimento ao espetáculo. O incidente deixou o pernambucano um pouco magoado, mas tempos depois eles se reconciliaram e a amizade continuou.

Das obras que publicou, o livro de contos Boca do Inferno foi o que rendeu as piores reações. Otto Lara Resende chegou a sair de livraria em livraria recolhendo os exemplares. Seu pai e mais alguns membros da classe conservadora cristã mineira se desagradaram do livro e dias depois de partir com a família para a Europa sua casa amanheceu com fezes na porta em resposta ao conteúdo do livro. Ele também era advogado, porém sua atividade como jornalista marcou sua vida. Seu último trabalho foi como colunista da Folha de São Paulo, onde escreveu mais de seiscentas crônicas e era um dos colunistas mais lidos do jornal. A carreira foi interrompida há dez anos, no dia 28 de dezembro, quando Otto partiria deste mundo para sempre. A verdadeira causa de sua morte inesperada nunca fora revelada.

Uma bela crônica...

VISTA CANSADA

Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se fosse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde de desespero que roía - e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não - vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.