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sexta-feira, junho 20, 2003

A Hora Dele...



Fiquei impressionada! O cartaz de As Horas não tem o Ed Harris na foto. Todo mundo fala das mulheres do filme e ninguém fala do personagem de Harris. Para mim, ele é a figura principal do filme. Alguém pode achar estranha a minha afirmação, mas eu acho mesmo. Ele é o elo de ligação entre as três mulheres.


Ed Harris como Richard

A ligação de Virgínia Woolf com ele ocorre em três pilares. O primeiro é a obra Mrs. Dalloway, que tem uma grande influência na vida de Richard (que é o personagem de Ed Harris). É através dela que a mãe dele descobre ser infeliz e decide abandonar o lar depois do nascimento da segunda filha. A segunda ligação é o poeta, outro personagem da obra Mrs. Dalloway. Como Virgínia sente que precisa matar alguém em sua estória, ela decide poupar a heroína e acaba matando o poeta. Richard cresce e torna-se poeta. Ele absorve para si o personagem de Woolf e acaba por dar a sua vida o mesmo desfecho. A terceira ligação é que ele carrega consigo o mesmo sentimento de inadequação existencial e social que Virgínia possui. Ela é forçada ao isolamento por suspeita de insanidade. Ele se isola por sofrer um processo tenebroso de rejeição e perdas ao longo da vida.


Nicole Kidman como Virgínia

A ligação com Laura (personagem de Julianne Moore), sua mãe, é o ponto de catarse. Mãe e filho possuem uma ligação natural. Porém, o que deveria trazer uma relação benéfica entre os dois é o que causa, justamente, a ruptura. Quando ela descobre que se sente infeliz e quer interromper sua própria vida, não o faz por causa do filho. Diversas vezes ela demonstra, com o olhar, sua infelicidade e dá a entender que não deixou o lar por causa de Richard. O garoto percebe e passa a se comportar de forma recatada e observadora. Neste ponto de sua infância, percebe que a mãe o tratava como se ele fosse um obstáculo para a felicidade dela, e absorve esse peso para si. Quando ela rompe a ligação e vai embora, o que fica marcado na alma dele são as duas sensações: de ser um obstáculo e de ser rejeitado.


Julianne Moore como Laura

Ele cresce, começa a dedicar sua vida a poesia e conhece Clarissa (personagem de Meryl Streep). Eles vivem, de certa forma, a estória de Mrs. Dalloway. Ele tomou para si o poeta e ela incorporou Mrs. Dalloway. Ele a chama de Mrs. Dalloway. Ela aceita o chamado porque o ama. Ele decidiu viver com outro homem. Ela passou a viver com outra mulher. Ele é acometido pela AIDS. Ela dedica sua vida para cuidar dele. Ele percebe que ela se sente infeliz por não ter vida própria. Ela se sente infeliz fora do contato com ele, e por não ter vida própria, embora não admita esta última afirmação.


Meryl Streep como Clarissa

É este o ponto onde todas as coisas convergem. Ele sente que sua existência foi um obstáculo para a felicidade das duas mulheres mais importantes de sua vida: a mãe e Clarissa. Aqui, o processo de inadequação existencial e social que foi gerado ao longo de sua vida chega ao ápice. Ele cansa de ser uma bola de chumbo nos pés de Clarissa, que ao contrário de sua mãe não o rejeitou, não fugiu dele, e quanto pior ele ficava, mais ela o amava. Richard decide, então, suicidar-se. Tirando a própria vida, ele pensa em libertar aqueles que estão a sua volta do peso que ele sentia ser em suas vidas. Virgínia, décadas antes, havia feito o mesmo, pelo mesmo motivo. O personagem de Ed Harris é tão forte e tão complexo que eu acho que preciso ver As Horas mais umas mil vezes para poder decifrar mais algumas coisas que me perturbam a mente.



Outra coisa interessante que eu notei no filme, e relacionado a Richard e Virgínia. Quando ela estava escrevendo Mrs. Dalloway e queria matar um personagem, essa vontade dava-se pela necessidade que ela sentia de, através da morte, dar vazão às trevas que habitavam a sua alma. Ela, então, mata o poeta por não ter coragem de matar a heroína. Mas isso não foi suficiente. Um dia, por amor ao marido, e por não querer fazê-lo mais sofrer, ela decide tirar sua própria vida. Richard também escreve um livro, sua única obra em prosa. Nela, ele também sente necessidade de dar um fim a todas as dores de sua alma e decide matar um dos personagens. Ele preserva a heroína, personagem dedicada à Clarissa, e mata o personagem dedicado a sua mãe, que era a metáfora do seu sofrimento. Mas isso não foi suficiente. Um dia, por amor a Clarissa, e por não querer mais fazê-la sofrer, ele decide tirar a própria vida.



E assim, Mrs. Dalloway é preservada duas vezes. Se alguém não entendeu porque a heroína é preservada em dois momentos, basta ver que quem primeiro assume a figura de Mrs. Dalloway é Laura, e anos mais tarde, Clarissa. As duas encontram-se ao fim do filme. As duas estão vivas. Virgínia mata o poeta e libera Mrs.Dalloway. Richard queria matar Mrs. Dalloway - que em seu passado seria sua mãe – mas ao chamar Clarissa de Mrs. Dalloway ele transfere a personagem de sua mãe para ela. Ele não poderia matar Clarissa. Então, ele cria um personagem para a mãe. Mata este personagem e libera Mrs. Dalloway mais uma vez. E depois morre, cumprindo o destino que Virgínia havia traçado para o poeta. O ciclo se fecha, então.

Um pequeno comentário...

As Horas é um filme fortíssimo e que, de certa forma, coloca o suicídio como saída para aqueles que não conseguem transcender a escuridão da alma. Eu não irei fazer aqui um julgamento de valor a respeito das vitórias ou derrotas de cada um. Porém, eu tenho uma certa ressalva quanto a essa decisão de tirar a própria vida, com a idéia de que esta atitude libertará as pessoas a quem se ama. Eu discordo disso. Discordo porque nem sempre quem fica entende a atitude como libertação e passa a se sentir culpado pelo ato praticado pelo outro. Além da sensação de culpa, é agregada a sensação de impotência, quando quem fica começa a pensar que não conseguiu ajudar o outro a sair daquela situação.

Eu penso nisso, lembrando do personagem do esposo de Virgínia Woolf no filme – a quem por sinal, não deram um fim decente na estória. Ele a amava. Ela o amava. Ele queria ajudá-la a sair daquela situação. Ela resolveu morrer para libertá-lo. Será que a atitude dela o libertou ou o aprisionou?