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sábado, novembro 19, 2005

"Eu sou a lembrança do terror..."

Renato Russo diz na canção "La Maison Dieu", de um dos últimos discos da Legião Urbana, que o terror só mudou de cheiro e de uniforme. Depois do que eu vivi ontem, creio que Russo falava a verdade.

Ontem, segundo dia da mobilização contra o aumento das passagens de ônibus, eu estava indo encontrar Hugo na faculdade e era aniversário dele. Quando vi, precisava descer uma parada antes. Olhei e vi o batalhão de choque subindo a ponte do Derby. Parecia cena de filme. Aquele mar de homens vestidos de cinza, com cacetete e escudo.

A gente nem acompanhou a passeata a partir do Derby. Quando a gente saiu pra fazer a cobertura, vimos quatro ônibus quebrados e pichados. Tiramos fotos e entrevistamos motoristas, cobradores e passageiros. Seguimos, tranquilamente, em direção ao centro da cidade, tomando uns desvios para não sermos alvo de nada.

Quando a gente chegou no centro, muita gente estava voltando pra casa, dizendo que tinha acabado a passeata. Então, nós encontramos com a manifestação na frente do palácio do governo. Os estudantes fizeram uma assembléia pública para decidir se continuariam ou parariam e qual o destino a tomar. Falaram o destino para o público, na frente da polícia.

Então, a manifestação seguiu pacificamente pelas pontes até parar na frente da assembléia legislativa. Então, vimos um ônibus andando e um grupo entre cinco e oito garotos - em uma manifestação de mais de 300 pessoas - correram em direção ao ônibus e atiraram um cavalete pelo vidro de trás do veículo. Enquanto eles corriam, os organizadores da passeata no carro de som pediam, pelo amor de Deus, que eles voltassem, não fizessem aquilo, que os garotos não atirassem pedras, mas era tarde demais.

Os demais manifestantes nem chegaram perto dos ônibus. A polícia partiu pra cima, mas a organização conseguiu negociar. A passeata continuou. Quando chegamos na esquina entre a Avenida Cruz Cabugá e a Rua Visconde de Suassuna, estava tudo bloqueado do lado direito. O pessoal falou aos estudantes, que decidiram continuar a passeata pela Suassuna e foram em frente.

Quando a manifestação seguiu e a gente olhou para trás, vinha o batalhão de choque dividido em duas fileiras, uma do lado esquerdo e uma de trás, do lado direito a PM tinha fechado a rua. Ninguém podia voltar. Eles pegaram a passeata pelas costas e começaram a atirar bombas de gás lacrimogênio.

Eu estava tirando fotos. Hugo dispersou de mim e eu entrei no meio do batalhão de Choque para não ser atingida. Eles conseguiram dispersar a manifestação. O pessoal dos sindicatos da Suassuna gritando contra os policiais. Eu consegui achar Hugo e disse a ele que era melhor a gente ir embora. Então aconteceu um negócio terrível: dois policiais pegaram um garoto e encostaram na parede.

Um senhor vinha entrando em um escritório e viu a cena, se dirigiu ao policial e disse "mas não precisa disso". O policial tirou uma pedra da bolsa do garoto apontou para o homem e disse "o senhor sabe o que é isso? isso é vandalismo! Venha incitar agora, seu merda". Eu me revoltei e disse "que história é essa de chamar cidadão de seu merda?". Então, ele partiu pra cima de mim, foi grosso, me empurrou, e as pessoas em volta protestaram.

Então, uma amiga nossa disse: "Ana, eles estão tirando fotos das pessoas". E eu disse "Meu irmão, isso é coisa séria". Encontramos um professor de história que nos falou "Meus filhos, o DOPS não acabou. Eles estão fichando todo mundo". Eu fiquei bege com aquilo e pedi aos meninos que fóssemos embora.

Então, nós fomos para a Conde da Boa Vista encontrar o resto do pessoal da reportagem para ir pra casa. Quando chegamos lá, eles pegaram um de nossos amigos. Eu virei para o policial e disse "Moço, ele está fazendo cobertura. Não prenda ele, não". O cara virou para mim e disse "Está achando ruim? Quer ir, também?" e eu respondi: "não, quero não". Ele me retrucou "Você vai também", e partiu pra cima de mim.

Eu sai me desvencilhando dele, e outro tomou a frente. Eu subi a calçada e eles tentando me agarrar. Os fotógrafos em cima. Quando vi, eu cai no chão. Eles me arrastaram. Hugo veio tentar me defender. Eles pegaram Hugo pelo pescoço e atiraram nós dois dentro do camburão, junto com mais um fotógrafo que tentou ajudar a gente.

A gente conseguiu entregar as máquinas para colegas nossos, e as fotos estão salvas. Quando a gente estava dentro do camburão, o cara da PM ficava dizendo "senta, senta agora" e eu dizia a ele "moço, não cabe" e ele berrava "você quer que eu entre ai e mostre que cabe?". Eu engoli seco, porque a raiva que eu estava, não conseguia medir. De dentro do camburão, eu liguei pra amigos, que acionaram a coordenação da faculdade.

Então, eles arrastaram a gente e muitas outras pessoas - gente, inclusive, que nem estava na passeata e, sim, esperando ônibus - para a delegacia. Quando chegou no local, eles ficavam gritando com a gente. Impediram da gente falar no celular. Eu atendendo as ligações e eles ameaçando de tomar meu telefone, gritando comigo.

Uma jornalista amiga nossa, que estava fazendo cobertura pela Agência Carta Maior levou grito e foi empurrada na frente da delegacia. Havia um advogado de direitos humanos, que estava levando grito dos policiais na frente da delegacia, mesmo se identificando. Acho que foi por isso que representantes da OAB e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em peso, foram para o local. Se brincar havia mais advogados que gente detida, na delegacia.

A nossa sorte é que o pai de Hugo acompanhou tudo e conseguiu falar com o chefe do batalhão para liberar a gente. Ele colocou todas as pessoas que haviam sido "pegas, por engano", segundo eles, e colocaram em uma sala. Inclusive, o filho de um jornalista do Jornal do Commercio. Enquanto isso, a minha coordenadora conseguiu falar com um professor de Direito Penal, e mandou ele para a delegacia.

Quando ele chegou lá, era meu vizinho. Depois dele, chegaram meu pai, que é advogado, Conrado, o pessoal do Centro Luiz Freire, com quem eu trabalhei junto com o pessoal do Departamento de Direitos Humanos do Grupo de Assessoria Jurídica para Organizações Populares (Gajop), que foi onde eu estagiei recentemente. Nunca vi tanto advogado me procurando.

Eles resolveram tudo e a gente foi liberado. No entanto, o pai de um dos garotos disse que eles colocaram no registro da delegacia que a gente havia sido detido porque estava fazendo "baderna" na passeata. Eu fiquei tão indignada quando eu soube disso hoje de manhã, que nem consigo falar direito.

O pior é que veicularam minha imagem sendo presa tanto no NE TV quanto no Jornal Nacional com um off dizendo "os estudantes, que entraram em conflito com a polícia foram detidos". Poxa vida, eu não entrei em conflito com ninguém. Eu tenho meu juízo em perfeito lugar. Não vou discutir com gente que diz "a ordem da gente é prender", independente de quem seja.

No entanto, o que me arrasou foi ter visto a foto de Hugo pego pela polícia sendo estampada na capa do Diário de Pernambuco e da Folha de Pernambuco, com a legenda "manifestante é imobilizado por policiais militares". Poxa, ele estava trabalhando. A foto mostra ele de máquina na mão. É um absurdo. Pelo menos, o Diário de Pernambuco coloca a fala do pai dele, na matéria, contando a verdade, mas na capa não diz isso.

Eu estou super arrasada. Dormi muito mal. Estou tremendo desde a hora que acordei. Estou com medo de andar na rua. A minha irmã colocou um cartaz no meu quarto dizendo "Bem vinda ao paraíso, depois de passar umas horas no inferno", e foi isso mesmo. Aquilo é um inferno. Quando a gente vê o pessoal relatando, nas comunidades, que não tem motivo nenhum para andar tranquilo nas ruas, sabendo que a polícia age assim, de maneira arbitrária, a gente acha que é brincadeira. Ontem, eu senti na pele que isso é a mais profunda verdade.