Experiências que mudam as nossas perspectivas...
Havia acordado hoje com disposição para escrever algo sobre a presença de Lula em Davos. Mas aconteceu - me algo hoje que já havia acontecido antes, mas talvez por estar com a sensibilidade aguçada, o que nas outras vezes que presenciei cena similar culminou em susto passageiro, hoje tomou proporções de me deixar atordoada a ponto de jantar pensando no mendigo e sentindo o gosto amargo de estar numa posição privilegiada e ser extremamente covarde. Eu contei a história a meus amigos do Quem Conta Um Conto. Não consigo contar outra vez. Ainda preciso refletir muito sobre o que vi e como reagi e porque reagi daquela forma. Eu estou mais inconformada com a minha própria reação na verdade. O texto que segue abaixo é o email que mandei pra eles, porque não quero sentar e reescrever tudo no word. Quero ficar aqui em paz com a minha angústia. Sei de alguém que já sentiu algo parecido. Mas a experiência dele é só dele. Como a minha é só minha. Se alguém já passou por algo similar, pode comentar a vontade. Quem não passou também. Quem quiser me criticar, critique. Quem quiser dizer alguma palavra animadora, diga. Na verdade, tudo o que for dito vai acrescentar muito, embora não mude o teor do que sinto neste momento e nem as consequências do que as reflexões acerca deste tema podem trazer. Bem, chega de delongas. Aqui vai a cópia do email que eu mandei contando o que houve.
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From: Ana Paula
To: Quem Conta Um Conto
Sent: Friday, January 24, 2003 9:49 PM
Subject: [quemcontaumconto] Re: Fwd: Fw: FÓRUM MUNDIAL SOCIAL
Oi Pessoas
Eu li as matérias sobre o FSM.
Confesso que sinto muito por não ter tido iniciativa nenhuma de ir ao encontro em Porto Alegre.
Eu cresci dentro de movimentos sociais, eu andava no meio das favelas como andava dentro de casa, não tinha medo algum, conversava com as pessoas, e entendia plenamente cada vez que alguém reclamava da dureza da vida. Era novinha, tinha dez ou doze anos.
Aí cresci, meus pais se separaram, eles continuaram trabalhando em movimentos sociais e eu me prendi no meu mundo, eu acho. Pelo menos esta é a única explicação que tenho para ter deixado de acreditar em tudo. Primeiro me decepcionei com os grêmios em que participava, depois não conseguia me sentir engajada na PJMP - Pastoral da Juventude do Meio Popular.
Foi o meu fim, eu acho. Embora ainda conserve todo o sentimento de respeito pelas pessoas menos favorecidas, eu me tornei uma pessoa extremamente medrosa. Ando pelas ruas em pânico, e dava aulas no projeto social com medo de andar na rua da escola onde ele acontecia. É terrível.
E hoje me aconteceu uma coisa que deixou minha alma em perturbação completa. Eu vinha andando pelo beco do estudante, que é uma passagem que corta duas grandes avenidas em Recife e que dá de cara com a escola que eu fiz 2º grau.
Pois bem, vinha eu pelo beco, quando dou de cara com um mendigo sentado no chão. Ele estava completamente sujo, os dentes rachados, devia ter seus 25 ou 28 anos, e ria. Ria muito. Mas era uma risada sem som. Uma risada tão mórbida que eu senti um medo obscuro. Gente eu quase congelo no chão, do medo que aquela risada e os olhos fortes dele estavam me passando. Era algo pavoroso. Pense num riso assassino, daqueles de bandidos de filmes de tortura. Era assim. E ele ria do nada. As pessoas passavam e o ignoravam. Acho que eu fui a única que olhei pra ele. Ele estirou a mão e eu fiz um sinal negativo com a cabeça. Até tinha dinheiro. Mas no pânico da feição dele eu nem me lembrei deste detalhe.
O lance é que eu saí do beco do estudante quase morta. Ou melhor. Acho que parte de mim morreu ali. Como morre sempre que eu vejo alguém naquelas condições. Primeiro porque eu sempre que olho alguém assim imagino que ele sendo um ser humano como eu, não temos nada de diferente. Eu poderia estar ali no lugar dele e ele no meu lugar. Depois eu começo a me fazer a pergunta que eu acho que todos já se fizeram algum dia: porque ele, se é um ser humano como eu, está numa condição daquela? Eu me senti uma verminose. Eu fiquei tão angustiada. Me senti tão indigna do meu lugar no mundo. Foi algo tão perturbador quanto a risada nefasta que ele estava emitindo.
A sensação que deu, quando eu finalmente pude pensar racionalmente, é de que aquela pessoa podia ser alguém com algum tipo de distúrbio mental - e ele aparentava ser - que jogaram pelo mundo. Eu sempre passo pelo beco do estudante e nunca o vi ali.
O lance é que talvez, se eu tivesse hoje o sentimento que eu tinha quando era mais nova, eu não teria medo e procuraria um lugar onde eu pudesse adquirir alguma coisa para que ele pudesse se alimentar. É assistencialismo. É. Mas não vejo mal nenhum em ser assistencialista. Pior é não proporcionar a alguém a oportunidade de fazer pelo menos uma refeição naquele dia dizendo que aquilo não resolverá a vida dela no futuro.
O lance é que eu não fiz nem o assistencialismo. E nem foi porque achei que era errado. Foi porque meu medo daquele ser foi tão grande que eu fui embora. Eu olhei pra ele e fui embora me sentindo a pior das criaturas. Mas fui embora. Fugi. Com meu medo de adulta enclausurada no mundo globalizado que acha que a vida é uma bomba - relógio. Simplesmente fugi.
Meu Deus, me lembro agora de um conto da Clarice Lispector. Meu Deus, o nome da personagem também é Ana e ela faz o mesmo que eu fiz hoje. Meu Deus, Clarice escreveu um conto, que eu li e hoje, eu, Ana, senti o mesmo que a Ana do conto. Não sei se me surpreendo agora com esta lembrança que me tomou agora ou se me choco. Só que eu acho que não vou conseguir apagar a flama do dia. Vou procurar o conto e mando pra vocês verem.
Deu vontade de chorar. Não sei se de vergonha. Não sei se porque acho que me acovardei ao longo dos meus dias. Eu perdi tantas coisas nos últimos meses que nem sei mais se o que eu vejo no espelho sou eu mesma ou parte de mim. A única convicção que eu tenho, depois dos solavancos que eu tomei é que as coisas não podem continuar como estão. E depois da experiência de hoje, eu acho que a hora chegou.
Beijos
Aninha
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P.S - O link para o conto na internet é esse aqui: Amor - Clarice Lispector