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segunda-feira, março 31, 2003

Foi assim...

Tudo começou na primeira semana da oficina de literatura. Sala cheia. Muita gente falando ao mesmo tempo, e eu lá observando os novatos. O professor sinaliza que um romance seria lido e discutido durante o primeiro trimestre. Quando ele disse Abril Despedaçado, pensei que seria o livro do filme - uma compilação belíssima de fotos, roteiro e textos a respeito da obra de Walter Salles Jr. - escrito pelo jornalista Pedro Butcher com fotos de Anna Luiza Muller.



Mas não, era o romance albanês Prilli y thyer, de Ismail Kadaré que foi traduzido como Abril Despedaçado e ganhou adaptação para o cinema. O livro seria lido em sala de aula, e debatido com enfoque na construção de personagens e diálogos, montagem das cenas e outros detalhes literários. Lá vou eu, então, com o livrinho novo, ainda no plástico, para a aula. Não sabia, definitivamente, o que me esperava.

Ao ler as três primeiras páginas, percebi logo que a trama era trágica. Porém, o mais desesperador foi sentir que aquele drama me atraiu. Sempre tenho medo de ler coisas muito fortes, mas fiquei hipnotizada. Não resisti. Estava na metade de um livro de cartas e de um livro de contos. Parei os dois e fui ler a obra de Kadaré. Devorei o livro em três dias e passei uma semana tentando chorar o resultado dele na minha alma. Não consegui. Fiquei visivelmente atormentada. Andava pela rua querendo gritar. Angustiada. Aquela aflição me corroendo interiormente. Diana deve ter sentido o mesmo...

Passei duas noites sem dormir tentando compreender como é que aquilo acontecia. Dizem que a estória é real e aconteceu em 1930. Não saberia dizer...na verdade. O que sei dizer é que fiquei pensando em mil coisas depois que li o livro. Não estamos com nossas vidas comprometidas em um pacto de sangue, e mesmo assim, não damos o valor que deveríamos dar a possibilidade que temos de escolher o caminho a seguir. Essa foi a primeira coisa que ficou ecoando na minha cabeça.



Segundo foi o Kanun, que é o conjunto de leis secular que regia (não sei se ainda rege) a vida da população montanhesa na Albânia, onde as leis do Estado não conseguiram penetrar devido a forte tradição. Do ponto de vista de alguém que mora no Brasil, não existe nada tão cruel e arbitrário. Porém, é possível entender como aquelas pessoas viviam sob aqueles pactos sangrentos destruindo gerações inteiras de famílias. Quando as novas gerações nasciam, já estavam inseridas dentro das regras de honra, então, elas não conheciam uma vida diferente. A palavra empenhada dentro do clã falava mais alto do que o desejo de cada um.

E isso é notável dentro do livro de Kadaré. Eu senti o autor o tempo inteiro brigando com esses dois lados. Um que achava tudo aquilo inacreditavelmente insano e o que mostrava um respeito resignado e admirador por aquelas pessoas que consentiam viver dentro daquele regime, mesmo que lhes custasse a vida. Cada personagem dele parece ter sido construído para indicar uma visão diferente do mesmo drama. Isso eu achei fantástico!

Confesso que no início eu fiquei meio triste por ele não ter enfocado apenas o drama do personagem principal. Depois entendi porque ele fez a escolha de inserir outros personagens que aliviassem um pouco a narrativa. Se o foco tivesse sido apenas no aprender a morrer de Gjorg, ninguém agüentaria ler, tamanha seria a tensão. Por isso o livro é construído em forma ondular de apreensão e alívio, com metáforas belíssimas entre guerra e paz. Sinceramente, vale a pena cada palavra, cada frase, cada parágrafo, cada cena, cada capítulo.

Abril Despedaçado foi o romance mais lindo e mais triste que eu já li na minha vida.