"sobressalto
esse desenho abstrato
minha sombra no asfalto..."

Não lembro bem em que ano assisti Lucia e Sexo na Fundaj. Deve ter sido no meio do segundo semestre de 2003. Não lembro bem. Isso poderia não fazer muita diferença, mas acabou fazendo porque naquela época eu estava com a sensibilidade aguçada demais, e acabei guardando trechos do filme que, em outras épocas ou circunstâncias, eu não teria notado.

Uma delas é uma situação peculiar do protagonista masculino, que é escritor. Existe um conflito traçado no papel que ele desempenha como criador e como criatura. Criador de suas obras e criatura no cotidiano. Quando está construindo suas narrativas, ele pode decidir o rumo dos personagens, o que tirar e o que acrescentar. Se não gostar de um trecho é possível voltar e refazer, essas coisas.
Quando saímos do plano da criação para a o cotidiano essas intervenções acabam ficando restritas porque não se tem uma visão total dos acontecimentos e, além disso, os resultados das ações não dependem unicamente de quem executou. Muitas vezes, alguém age com uma intenção e o desdobramento é completamente diferente do planejado por causa de fatores externos e não previstos.

Isso é abordado em Lucia e o Sexo de uma maneira muito delicada, apesar dessa constatação trazer um impacto forte, principalmente quando passamos por algo parecido. Ontem eu perguntei a Luana se ela havia passado pela experiência de escrever uma história e viver aquilo algum tempo depois. A resposta dela foi negativa. Então, eu fiquei me perguntando se isso teria acontecido com mais alguém.

É muito estranho ver algo que você jurava ser fruto da sua imaginação tomando forma. Mais angustiante ainda é prever o final daquela cena, saber que ela não terminaria bem e não poder usar o velho “delete” para modificar o desastre previamente anunciado. Em Lucia e o Sexo, o roteirista ainda tentou dar ao protagonista escritor uma segunda chance. Aqui, do lado de fora, na efervescência da rotina, nem sempre é possível. Que pena...

**O hai kai do título é de Paulo Leminski