
“Mais do que tudo, escrever foi o que me atrapalhou sempre a vida, uma maldição que é igual a ter repouso na tristeza. É algo que eu sei, é só o que eu sei, de um saber sem esforço, embora me custe me custe me custe – nenhum saber é tranqüilo.
Então é isso: escrevo porque é o que me foi dado fazer no mundo, porque acho que nasci com isso. A bonita-como-a-lua do pai é escritora.
O que me torna, dentro de alguns pontos de vista, uma pessoa que, mesmo caindo de costas, consegue sempre quebrar o nariz. Mas nem me importo: escrever é voltar a ouvir Shein vi di levune na boca de meu pai.
Coisa boa da vida.”
(Arquitetura do Arco – Íris. Cíntia Moscovich. Ed. Record)
Eu nunca havia prestado atenção, ou sequer lido uma linha, deste livro da Cíntia Moscovich. Conrado é que sempre se sentiu atraído por ele. Lia sempre um conto por vez, sentado nas poltronas da livraria, antes das nossas aulas.
Um belo dia, namorando as obras de Nelson Rodrigues que eu ainda não tenho, esbarrei de novo com o Arquitetura do Arco – Íris. Virei a contracapa e comecei a ler. O texto que apresenta o livro é este que se encontra no começo deste post, e foi por causa dele que, naquela mesma noite, eu me virei para Conrado e disse: “eu quero ler este livro algum dia”. Ele guardou minhas palavras muito bem, porque me trouxe a obra de São Paulo.
Reli, mais uma vez, o texto da contracapa e, apesar de ter sentido uma fascinação similar à do primeiro contato, não acho que escrever é como repousar na tristeza. Talvez, quando a gente descobre na escrita a nossa ponte de diálogo com mundo, as coisas se transformem um pouco porque, nem sempre, o ato de se expressar através da palavra escrita é cômodo ou agradável; mas não chega a ser triste.
Acredito que o mesmo acontece com qualquer pessoa que descobre sua maneira de conversar com o meio exterior, inclusive se esse modo for o da oralidade. Transmitir com perfeição uma idéia, um sentimento, um estado, através da fala, também é um dom. Quando eu vejo alguém que sabe dizer as coisas de maneira clara e organizada, frente a frente com o interlocutor, sem tropeços, eu fico tão abismada quanto se estivesse diante de alguém que fez uma bela escultura, pintura ou canção.
Então, quando li: “escrevo porque é o que me foi dado fazer no mundo, porque acho que nasci com isso”, confesso que fiquei muda. Na verdade, foi exatamente por causa desta sentença que eu quis ter o livro. Não consigo imaginar algo que defina melhor o que eu sinto diante da escrita. Se, ao final da minha vida, eu pegar todos os meus textos e concluir que eu não produzi coisa que prestasse, ainda assim, eu não me arrependeria, porque não sei me expressar melhor de outro jeito.
Algumas vezes isto é, de fato, angustiante porque uma vez o canal aberto, as coisas querem sair e, nem sempre elas deveriam. O Vitor Ramil estava falando sobre isso, ontem, no Metropolis, da TV Cultura. Ele dizia que as composições do último disco dele acabaram revelando mais coisas do que deveriam ser ditas. O que fazer? Confesso que, de vez em quando, eu acabo doente porque as palavras querem sair e eu não quero encará-las, mas, ainda assim, não consigo achar isso triste.
E, talvez (e leia-se, no que direi a seguir, não mais que uma suposição), o que a autora, ou um de seus personagens, chamou de "uma maldição, um repouso na tristeza", é o fato de não escolhermos (pelo menos, não até agora) que talento queremos ter ou que forma de expressão enxergamos ser a mais conveniente para a nossa realidade.
Seria uma espécie de “fatalidade”, como conseguir quebrar o nariz mesmo caindo de costas. Um desígnio lançado pelos Deuses do Olimpo sobre cada um de nós. Uma marca elaborada ao longo da gestação. É claro que ninguém precisa encarar a situação de forma tão trágica, mas, certamente, existe algo que nos define, mesmo que de vez em quando o canal apareça truncado e fique o papel em branco, a melodia incompleta, a tinta sem o tom exato ou a fala hesitante.
Talvez seja justamente essa agonia “predestinada” que torne cada bom resultado tão libertador...
Em tempo: desculpem os textos excessivamente pessoais. É que alguns sentimentos estão atrapalhando o caminho e, depois de meses desviando, ou eu colocava para fora ou não conseguiria fazer mais nada. Estou como Édipo, encarando de frente o inevitável. Seja o que Zeus quiser...